quinta-feira, 22 de julho de 2010

Capítulo 5

Marcelo apareceu na noite seguinte, e na outra também. Mas Clara não parecia disposta a conversar muito. Sentia como se estivesse se abrindo e não queria. Desconfiada, sempre fora. Ficava escutando as conversas dele com Maria e Daniel, às vezes riam bastante, às vezes ficavam lembrando de pessoas que conheciam.

Sempre fora meio anti-social. Não se interessava pela vida de pessoas que nem conhecia. Fofocas, então, sempre era a última a saber e, mesmo assim, muitas vezes nem sabia de quem se tratava. Aquilo a irritava um pouco. Várias coisas a incomodavam.

Até que, em poucos dias, Marcelo apareceu de manhã. Ela ouviu a conversa alta na cozinha, que também era sala ao mesmo tempo. Não gostou de ser acordada tão cedo, afinal queria descansar, era para isso que estava ali. Só para isso?

Bateram na porta de seu quarto.

- Entra! - ela falou, desanimada.

Era Marcelo. Como ele se atrevia bater assim à sua porta?

- O que foi?

- Levante daí e vamos sair...

E saiu. Ela sentia agora o adorável cheiro de café recém passado. Vestiu um jeans velho, um blusão de lã bem grosso que adorava e que lhe caía muito bem, uma touca e umas botas estilo cowboy. Escovou os longos cabelos loiros e chegou à sala. Não havia ninguém. Estavam lá fora, com suas xícaras de café, sentados ao sol.

Marcelo estendeu uma para ela e sorriu, olhando-a nos olhos de um jeito que a fez sorrir também.

- Tome somente o café. Vamos comer na cidade. Você vai gostar. A melhor confeitaria daqui!

Ela tomou o café e entrou no Jeep com ele. Ele lhe ofereceu um cigarro, ela aceitou. Sempre tinha adorado fumar andando de carro - embora não tivesse o vício de fumar, apenas um hábito que lhe dava prazer. Ele ligou o som e uma música antiga tocava. Vieram recordações à cabeça de Clara. Mas não recordações de coisas que aconteceram, e sim de coisas que ela costumava sentir há muito tempo atrás.

No quarto

Gosto de dormir no quarto de minha filha, de vez em quando. Porque adoro dormir sozinha. E adoro dormir sozinha num quarto pequeno, fofo. E acho que adoro dormir aqui porque me sinto com 12 anos de novo.

Por motivos que aqui não interessam, até essa idade, eu dormia no quarto da minha mãe. Tive, quando menor, um quarto junto com meu irmão, também. Mas sempre quis ter o MEU quarto. Quando consegui, foi um dos melhores dias da minha vida. Um daqueles dias que a gente grava na memória.

O quarto era pequeno como esse aqui, mas nem de longe tão arrumadinho e cheio de brinquedos. Com 12 anos eu já não brincava mais também. O quarto tinha a minha cama de solteira, o guarda-roupas que tinha sido de meu pai quando ele ainda era casado com minha mãe, e um tapete.

Tinha também uma pequena caixa de madeira, com chave, que eu fazia de mesinha de cabeceira. Guardava ali meus pequenos tesouros: meus poucos livros, aqueles caderninhos que a gente fazia questionário ou  que dava para os amigos assinarem com alguma dedicatória, e algumas bijouterias.

Em cima dessa caixa havia um tesouro maior ainda, que não sei aonde foi parar. Era um relógio daqueles de corda, que faziam tique-taque, e despertava com o barulho de uma caixinha de música. Muito antigo. Verde clarinho. Com a foto de minha mãe e meu pai abraçados, ainda namorados.

O tal relógio não funcionava. Eu, fuçadeira igual a meu pai, desmontei o relógio e mexi até arrumá-lo. Que maravilha era acordar nas manhãs frias para ir para o colégio com aquela musiquinha tão delicada.

E aqui, agora, no quartinho da minha filha, me sinto com 12 anos de novo. Eu já escrevia. Em cadernos velhos, em folhas soltas. Está tudo guardado. Talvez qualquer dia eu abra meus guardados. Quem sabe para tentar descobrir aonde foi parar aquela menina tão cheia de sonhos...

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Poço

Dizem que se a gente chegar ao fundo do poço, dali só podemos subir. E que se dermos alguns passos para trás, só se for para pegar impulso e ir para a frente. Pois bem. Acho que estou lá no fundo. Parei de cair. Parei de olhar para o chão. Olhei para cima, e lá vi uma luzinha... miragem?

A luz que eu vejo me seduz. Por vezes, passa uma nuvem, às vezes branquinha, às vezes cinzenta e carregada. Nesse poço ainda me sinto protegida. De mim mesma. Porque realmente faço coisas que me dão medo. Não me entendo, também, por vezes. Mas já paguei a conta do analista "pra nunca mais ter que saber quem eu sou".

Na verdade, algumas coisas sei sobre mim, porque se repetem. Não há como não ver. Também se eu digo que sou assim, acabo sendo assim. Mas gosto de minha companhia, na maioria das vezes. Me divirto estando só, com meus pensamentos, sonhos, loucuras, e gosto de ser diferente.

A única coisa que realmente me incomoda é o lugar em que vivo, onde as pessoas me veem como louca. Lugares maiores: lá, a gente pode andar como quiser e tudo é normal. Se você senta no meio-fio, ninguém fica te olhando. Ninguém analisa sua roupa, nem se você caminha cantando pela rua. Nem te julgam pela tua idade, se você tem um comportamento adequado  para a sua idade. E isso até os mais jovens fazem em cidades de mentalidade pequena como a minha.

Aqui é o poço. E dele, estou começando a sair. Me aguardem. A vida me aguarda.